Demorei anos para conseguir realizar um sonho meu: um projeto para jovens jornalistas, brasileiros e alemães, no Brasil. E como fazemos com todas as coisas que estão perto do coração, eu estava constantemente preocupada com o seu sucesso. Quando vi a lista de participantes brasileiros do curso, um pouco antes de o projeto começar, tive que engolir em seco. Não era só porque nem todos os jovens falariam a língua dos outros fluentemente. Também já era claro que as barreiras culturais complicariam o trabalho (e talvez a chuva de verão fosse impedir as filmagens). Não, meus colegas no Rio tinham aceitado incluir um participante cego. Seria um problema? “Não, claro que não”, eu me ouvi dizer. Mas, “é claro que sim!”, queria responder. Afinal de contas, de acordo com o programa, discutiríamos uma narrativa visual. Visualização de dados e reportagens em fotos, não longos textos. Como isso funcionaria com um jornalista cego? Mas tudo bem, tudo tem um jeito.
Chegando ao Rio, logo percebi que o idioma não seria um problema. Nem a chuva, porque não havia uma nuvem no céu. Quanto ao Lucas, ele me deu uma lição de vida desde o primeiro momento em que nos encontramos. Ele não só pode fazer tudo, mas também o faz sem ajuda. Ele consegue colocar água num copo até a beirada, sem derrubar uma gota. E ainda se locomove nas ruas de uma megalópole como o Rio melhor que eu, que venho de uma cidade pequena na Alemanha. Ele só precisa mesmo da Jackie, sua cadela – que, por sinal, é uma maravilha da natureza: não late, não rosna e é até, digamos, reservada quanto às suas necessidades fisiológicas. Só cede a elas se o Lucas estiver com tempo para ajudá-la. Rapidamente, a Jackie se tornou nossa mascote editorial e, é claro, a modelo preferida – e mais obediente – dos nossos fotógrafos.
O Lucas não tem o alfabeto Braille no teclado do seu computador – e comete menos erros de digitação do que eu. Ele consegue falar ainda mais rápido do que eu, mesmo em inglês. E ainda consegue ser um investigador, um jornalista de dados, capaz de decifrar tabelas rapidamente. Definitivamente, sabe o que faz. Mas o Lucas nunca vai ver como, depois de tanto trabalho, as reportagens baseadas em dados, visualizadas por um software, parecem tão simples para o leitor. Contudo, ele não precisa, porque já tem os números todos analisados na cabeça, onde eles parecem formar uma imagem só para ele.
Todos os participantes ficaram impressionados com o Lucas. Ele eliminou preconceitos. “Será que ele consegue fazer isso?”. Sim, consegue. Com a Jacky, ele sai sozinho para caminhadas, sem problema nenhum. Saquinhos plásticos estão amarrados num suporte na coleira, e, com eles, o Lucas recolhe as “necessidades” dela, sem deixar nada para trás. Depois as joga fora no lixo mais próximo. Pronto.
Sua capacidade auditiva é, naturalmente, fantástica. Só mesmo o Lucas soube pronunciar o meu nome direito: “As-tr-id”, não “Astride”. Ele reconhece uma cerveja pelo cheiro, e, até na balada, deixa os outros para trás. Karaokê? Sem problemas. Ele não precisa ler a letra da música na tela, sabe todas de cor.
Ainda bem que ele provou o contrário de algumas certezas que eu tinha.
Lucas, você não só foi uma pessoa muito simpática e produtiva na redação, mas também contribuiu muito para o sucesso do contaRio com a sua investigação persistente. E apesar de tudo isso você fez-me lembrar de usar todos os meus sentidos e, como uma boa jornalista, de não acreditar apenas no que está na frente dos meus olhos. Obrigada por isso.
Astrid Csuraji, 36, jornalista freelance e coordenadora-chefe do contaRio, Lüneburg